Atribuir ao uso de celulares a ocorrência de dor cervical pode não ser a melhor decisão para o sucesso do tratamento.
Com frequência recebo no consultório pacientes com queixas de dor na região da coluna cervical. E muitos já vêm com a crença de que a dor cervical é oriunda da posição do pescoço durante o uso do celular, seja para leitura ou para o envio de mensagens. Mas será que existe mesmo essa relação entre a prevalência de dor cervical e o uso de smartphones?
Alterações na região da coluna cervical estão sendo cada vez mais relatadas por profissionais de saúde, sendo, inclusive, objeto de diversos estudos e artigos científicos em todo o mundo. Sugere-se que em torno de 50% dos indivíduos adultos poderão apresentar, ao longo de suas vidas, algum sintoma doloroso envolvendo a região cervical. Atualmente, as alterações ortopédicas na coluna cervical e na coluna lombar têm sido a principal queixa de dor e de afastamento das rotinas diárias, tanto nos jovens como em adultos, levando grande parte desses pacientes a buscarem tratamento junto aos profissionais de saúde.
As afirmações que relacionam a dor cervical ao uso de celular têm se orientado, em muitos casos, por esta imagem extraída do artigo publicado por Hansraj e Kenneth (2014). Ocorre que essa reprodução (posição conhecida como “Text Neck”) foi gerada a partir de um software denominado Cosmoswork,
utilizado no âmbito da engenharia para verificar a relação das estruturas. Considerar que tais conceitos podem ser aplicados à coluna cervical, é não levar em conta todas as circunstâncias da biomecânica corporal, que é tão ou mais complexa quanto. São muitos os fatores que podem contribuir para o quadro de dor cervical, e atribuir a culpa à postura durante o uso do celular pode não ser a melhor decisão.
Estudos realizados até 2017 sobre o assunto concluem que há evidências limitadas de que vários aspectos relacionados ao uso de celulares - tais como quantidade de uso, recursos, tarefas e posições -, possam estar associados a sintomas e exposições músculoesqueléticas.
De outro lado, estudo observacional realizado em 2018 no Brasil - e publicado no periódico médico European Spine Journal -, com 150 jovens adultos de 18 a 21 anos, oriundos de uma escola pública do estado do Rio de Janeiro, concluiu não haver associação entre dor cervical e uso de celulares para essa faixa etária, desafiando a crença de que a postura durante o envio de mensagens pelo celular possa estar associada à crescente prevalência de dor no pescoço.
Finalmente, recente estudo publicado na Spine Journal em 2021, por um grupo de pesquisadores brasileiros, realizado com 582 voluntários com idade entre 18 e 65 anos, concluiu, mais uma vez, que o Text Neck não se associou à prevalência, à frequência ou à máxima intensidade de dor cervical em adultos.
Fonte:https://www.dropbox.com/s/l93fa3os5af9slz/Association_Between_Text_Neck_and_Neck_Pain_in.5.pdf?dl=0
Culpar o uso de celulares pela ocorrência de dores cervicais na população jovem moderna é reduzir as possibilidades de pesquisa sobre as reais circunstâncias que os acometem. Cada paciente é um caso a ser estudado e descoberto. O estilo de vida, as atividades diárias, bem como a biomecânica individual (desvios posturais, compensações musculares, alterações músculo-esqueléticas, tensões etc.), precisam ser considerados para a elaboração do melhor tratamento na prática clínica. O diagnóstico que não contemple essa série de fatores, tende a exigir exames - sobretudo de imagem - muitas vezes desnecessários, além de um excesso de tratamentos que objetivam tratar as estruturas da região do pescoço, ao invés de analisar o paciente como um todo.
Definitivamente, a "Síndrome do Text Neck" ("pescoço de texto"), que ainda vem sendo difundida por muitos profissionais de saúde, não possui qualquer relação direta com a dor cervical ou com danos relacionados à coluna cervical. Insistir nessa associação é um equívoco que se contrapõe à boa ciência e contribuiu para perpetuar a queixa de dor ou mascarar um problema de saúde pior, quando não diagnosticado com a devida antecedência.
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